domingo, 20 de outubro de 2013

CRÓNICA DESTES DIAS


CRÓNICA DESTES DIAS

Tenho em meu poder um texto escrito pelo professor Hugo Correia Pardal, antigo preceptor do Instituto de Reeducação de São Fiel. A crónica é bela e por isso merecedora de ser divulgada, tanto mais que o principal personagem - já falecido - era um homem que todos conheciam; um ser apoucado, andarilho e muito amigo das rezas que talvez por isso, o chamavam António das Avé Marias.





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"Uma sombra não será mais mais leve e ténue que a sua presença.
Entra de vez em quando na sala de aula, sub-repticiamente, e vai sentar-se numa carteira vaga, sem proferir palavra e sem outro gesto que não seja o de uma vénia profunda, persignando-se e olhando o crucifixo pendente na parede, ao alto. Daí a pouco, como por encanto, tem à frente de si os petrechos escolares todos, passados à sorrelfa pelos alunos, começa de fazer umas garatujas no papel, e a aula prossegue, como se nada de novo ali tivesse acontecido, nada.
Se o Sr. Inspector entrasse neste momento, era talvez o escândalo, porque o adventício, já do meio-dia para a noite, a enruçar, alquebrado, está no crepúsculo da vida e no entanto ali está, entre os educandos, como uma criança que vai à escola...
Toda a gente o conhece no termo de Alpedrinha, pobre de pedir, em sua mansa obsessão deambulatória de vagabundo, filho espúrio daquela terra morena da Atalaia, a freguesia-mãe de prole desenganada e desenvolta, e que devia pasmar ao dá-lo à luz, como ave que sem o saber tivesse andado a chocar ovo alheio, de uma alheia espécie.
Mas que era aquilo?!...
Um triste, enfezado e canhestro. diz-se dele que tem a mania religiosa, mal aferidos pela medida do senso comum os cinco celamins do entendimento. Talvez por isso, procura volta e meia a escola que foi outrora a mansão dos padres jesuítas de S. Fiel, centro atractivo das esparsas populações serranas, ao derredor. Se bem que isto seja hoje um reformatório, entra por aqui dentro sem pedir licença, tu-cá, tu-lá, e depois de largo tempo em oração, na igreja, digna~se assistir à aula e comer no refeitório, de gorra com uma rapaziada bravia, mas compreensiva e fraterna, com a qual estamos em dizer que muito teriam a lucrar, por vezes, os meninos bonitos colegiais.
No momento em que ele surge agora, após a leitura da lição, professor e alunos conversam acerca do sentido do trecho, a enternecida parábola tradicional que toda a gente conhece e começa assim: - Vinha o lavrador da arada, / Encontrou um pobrezinho...
O mestre repara no recém chegado e não pode deixar de lhe sorrir, que aquele velho é na verdade um menino, e a despeito dos seus cabelos cinzentos, da sua figura amarfanhada e castigada por todas as necessidades e por todas as intempéries, há nele algo de tão flagrante como surpreendentemente cândido e infantil. Tem de si para si que será um pobre de espírito, desses a quem pertence o reino dos céus, conforme a promessa divina. 
E a este pobrezinho de Cristo, um bom-serás, chama-o simplesmente pela sua graça à falta de alcunha mais convinhável para uma página de novela - António. Assim lhe chamam também as cachopas das redondezas, fazendo-o de fel e vinagre, se adregam de topá-lo a jeito, vendo-o tão inofensivo como um anho pascal, tão puro como um lírio branco:
- António queres casar comigo? Dás-me um beijo, António?
Ele todo se ruborizava, como um medronho maduro, e em sua voz de falsete recalcitra: - Desanda de ao pé de mim, não me venhas a atentar, que estás em pecado mortal...
Desenha no ar o sinal da cruz, num gesto pulcro de esconjuro, e vai de novo prostrar-se ante a portada do primeiro templo que se lhe depara, em oração e desagravo...
Agora, porém, está aqui na aula, a ouvir a história do lavrador da arada, o que levou consigo o pobrezinho, a assentou em sua casa à sua mesa, o que lhe deu do melhor que tinha para cear, e do melhor que possuía, lhe mandou fazer a cama para se deitar.
Mas aí mesmo, em leito tão bem ajeitado, chamavam alta noite os seus gemidos o desvelo do lavrador e aí mesmo - quem tal diria! - como Deus Nosso Senhor, - Achou-o crucificado...- Porque em boa verdade era Nosso Senhor, era Deus...
A classe fica como que em suspenso, num enleado encantamento, até que o primeiro sorriso céptico, aflorando, dá azo à pergunta do mestre: - Seria isto ainda possível, hoje em dia? O mesmo sorriso filosófico diz que não. Isso era no tempo em que Nosso Senhor andava pelo mundo...
E o professor continua: - Tão certo como ainda haver lavradores, há ainda pobrezinhos, e enquanto pobrezinhos houver, Deus andará ainda pelo mundo, com a sua angústia e a nossa piedade. Por isso disse Deus: - O que fizerdes aos pobres a mim o fareis...
Neste momento os olhos do professor volvem-se casualmente para o lugar que veio ali preencher aquele filho da miséria e do infortúnio, o demente e mendigo António. Mas ele já lá não está. Como entrou se esgueirou, imponderável e imperceptível, como nos versos de Antero - tão leve como a sombra sobre a água...
Os alunos voltam-se e verificam também a sua ausência, intrigados. E fica nos seus olhares uma surpresa. Uma ironia, talvez. Decerto, uma interrogação: - Pois seria Nosso Senhor?..."

  Regra geral todas as ruas têm uma placa toponímica nas duas extremidades com o nome que lhe deram. A rua Presidente Craveiro Lopes também ...